Setembro Amarelo: saúde mental, pandemia e depressão na comunidade LGBTQIA+

Finalmente estamos enxergando um horizonte surgir no fim do pesadelo chamado covid-19. Com a vacinação avançando ao redor do mundo, uma suposta retomada nos coloca de novo em contato com a palavra “normalidade”. Mas para o que exatamente estamos voltando? Como lidaremos com os impactos da pandemia na nossa saúde mental?

A pandemia enfim se encaminha para seu ato final, porém com este desenrolar ainda é bastante nebuloso. Com a vacinação avançando mesmo em epicentros como Índia, Estados Unidos e América Latina, a sociedade começa a se abrir, mas não se sabe ao certo como vamos emergir deste período traumático. Entre quase 4 milhões e 600 mil mortos ao redor do mundo, os países, especialmente o Brasil, precisam lidar com uma massa de pessoas mentalmente debilitadas e ansiosas. Por trás de reuniões quase sobrepostas no zoom, passeios mascarados pelos parques e volta às atividades cotidianas – uma tentativa de retorno ao que se chama de “vida normal” – há a sensação indubitável de luto permanente e a angústia de não saber o que vem no capítulo seguinte.

Para a população LGBTQIA+, a pandemia girou em um fuso um pouco diferente. O assunto “saúde mental na comunidade” não é novo, e para alguns, o distanciamento intensificou alguns gatilhos, tornando tudo muito mais debilitante do que para o restante das pessoas.

Enquanto parte da população se isolou para se proteger de um vírus desconhecido, muitos LGBT’s enclausuraram-se justamente com os seus algozes. O medo constante da morte, a depressão, a ansiedade, e a falta de políticas públicas para a parte mais vulnerável desta minoria, deixou essas pessoas ainda mais necessitadas de uma rede de apoio – que não estava disponível. Estamos todos nos arrastando para fora desse pesadelo, trazendo ainda as correntes da vida pré-pandemia como agravante.

Agora nos perguntamos: Saímos vivos disso, mas a que custo?


O fim das redes de apoio e o encolhimento do mercado de trabalho

A saúde mental LGBTQIA+ está em pauta constante, justamente por conta da violência psicológica e física que coloca essa parcela da população em situação de vulnerabilidade quase ininterrupta. O caminho de muitos LGBT’s é justamente o de migrar em busca de construir sua própria rede de apoio, uma vez que muitos não a têm em família.

Com o tom austero em que o vírus se instalou, muitos foram obrigados a retornar para suas casas para não acabar em situação de rua, ou de insegurança alimentar (o que não garantiu no fim que muitos acabassem nessa situação de qualquer forma). Todos esses movimentos de regresso causaram uma quantificável piora na saúde mental do grupo.

Um levantamento publicado pelo coletivo Vote LGBT, em parceria com a Box1824 para a CNN Brasil, atualizou uma pesquisa primeiramente publicada em junho de 2020, ainda no auge da pandemia, que ouviu mais de 7 mil pessoas em todas as cinco regiões do país. O assustador número de 55,1% dos entrevistados respondeu considerar que estão em condições de saúde mental piores hoje em comparação com um ano atrás. O mesmo número de pessoas considerou ainda que o risco de depressão no nível mais grave já é um diagnóstico presente, um acréscimo quase 8% maior que em 2020. Um adendo importante: os dados colhidos correspondem às classes B e C, umas das mais afetadas pela pandemia.

Mesmo com um retorno gradativo, após uma campanha massiva de vacinação que agora já alcança a população mais jovem, essas pessoas ainda enfrentam a sensação de instabilidade social e a falta de horizonte em relação a retomada de suas vidas pregressas. Muitos não sabem como voltarão aos seus postos de trabalho ou sequer se estes postos serão realocados.

Para se ter uma ideia deste impacto, seis em cada dez LGBT’s perderam completamente sua renda ou tiveram uma diminuição significativa dela durante os 18 meses de pandemia. Muitos estão desempregados há mais de um ano, e completamente sem perspectiva. A taxa de desemprego do grupo em geral chega a quase 20%, sendo mais intensa, por exemplo, entre indivíduos trans e travestis – e intensificado, claro, pela cor de suas peles.

Em um país de extrema desigualdade social, ser preto também é um fator definitivo para o aumento destes números – são as pessoas que migraram para uma situação de instabilidade ainda muito pior.

Setembro Amarelo

Com tanto para se absorver psicologicamente, era de se esperar que ocorresse uma simetria entre o aumento da disseminação do vírus e consequentemente da sensação de insegurança e desesperança, e o aumento no número de suicídios. Contudo, com tanto para lamentar, este, ao menos, foi um dado surpreendente de maneira positiva.

Atualmente, de 700 a 800 mil pessoas morrem todos os anos por suicídio, sendo em sua maioria homens e dentro de uma faixa etária extremamente jovem, entre 15 e 29 anos de idade. A pesquisa realizada em 21 países sobre tendências de suicídio nos primeiros meses da pandemia, publicada em abril deste ano, diz que no Brasil, a taxa de suicídio se manteve estável e em alguns países do mundo esta taxa chegou inclusive a cair. A variação da taxa entre os anos de 2019 e 2020 foi de apenas 0,4%, considerada bem abaixo da média prevista pelos especialistas.

Vale ressaltar que, apesar dos dados parecerem positivos, o Brasil se encontra em uma crescente desses números desde 2012, quando o número total de suicídio era 50% menor do que hoje em 2020.

Todo dado sem recorte social e econômico, é vago. A mesma pesquisa mencionada apresenta uma fragilidade grosseira que se reflete em como se lê os impactos de algo da magnitude de uma pandemia: de quem e para quem são esses dados. Dos 21 países pesquisados, 16 deles possuem alta renda, e 5 deles de renda média alta (sendo o Brasil pertencente ao último grupo). Apesar de concluir que não houve aumento nas taxas de suicídio nos grupos estudados em questão, a análise para países de renda média e baixa não possuem sistema de registro de óbitos fidedigno nem coleta de dados sobre essas mortes em tempo real, portanto não é possível ter uma conclusão definitiva sobre o comportamento – justamente onde as pessoas estão mais fragilizadas, os dados precisariam ser bem acompanhados.


Um luto sem data de término, mas calma…

Não se sabe ao certo como o stress pós-traumático desse período irá se externar nos indivíduos à medida que o cotidiano for retornando gradativamente a uma certa “normalidade”. O fato é que teremos que reaprender muitas coisas, inclusive as nossas interações pessoa-pessoa e pessoa-ambiente – a apatia social será um desafio. Perdemos não somente as nossas redes de apoio próximas, mas também as pessoas que preenchem as lacunas do nosso dia a dia – o motorista do ônibus, a atendente da padaria, todas essas pessoas que foram arrancadas dos nossos cenários. Se conhecer através do outro é uma capacidade inata do ser humano, e os danos causados pela quarentena estendida, ainda vão revelar muitas consequências inéditas para a história da humanidade.

Inéditas porque, apesar de já termos vivido outras pandemias enquanto sociedade, esta é a primeira vez em que todos, literalmente o planeta todo, assistiu a tudo de camarote – e com uma relação mais bem definida sobre o impacto psicológico que seria trazido por ela. Estamos cientes de que em algum momento nos sentaremos todos nessa sala fictícia e colocaremos à mostra as marcas deixadas por ela. Uma grande terapia silenciosamente acordada entre todos.

A reconstrução das nossas redes de apoio será o primeiro passo. A colega de trabalho da mesa ao lado rever a família distante – o restante dela para alguns, e se reconhecer ali como pessoas que viveram o mesmo momento traumático, portanto, empaticamente conectados. A economia é importante, claro, pois respalda ações concretas de restauração da ordem – trabalhar, pagar terapia, ir ao bar relembrar os momentos em que parte da sua vida não se resumia ao medo da morte –  a necessidade intrínseca de pertencer ao modelo econômico para tratar os sintomas dele também.

Será um período longo, muito longo. Enquanto as pessoas dizem “Eu não aguento mais!” – elas na verdade esperam de certa forma um passe de mágica, um filtro sobreposto que retire esse sabor agridoce de retomada, com tantos cadáveres à mostra na porta de suas casas. Mas isso não será possível. Todos terão que pegar suas vassouras e pás para limpar esse salão com temática apocalíptica. Temos um aquecimento global inteiro adentrando nas nossas salas. A vida urge.

Não existe volta à normalidade. O mundo pré-pandemia é só um vídeo em looping que estamos tentando avançar em vão. Nós LGBT’s, que já entendemos outras retomadas a vidas que não existem mais, sabemos um pouco como nos comportar. Já abrimos mão de outros mundos antes para vivermos novos horizontes. Se em 2018 o termo “ninguém solta a mão de ninguém” acabou com um uso mal empregado, aqui ele retoma com outra força, outro sentido. É no outro que podemos buscar um pouco de cor para essa nova realidade. Reconhecendo as mesmas cicatrizes, cuidando das cicatrizes um do outro.

Não solte a mão de ninguém. Você vai precisar que ninguém solte a sua também.