Saindo do Armário: entenda o fenômeno dos coming-out videos no YouTube

Um dos pontos de maior conflito na vida das pessoas LGBT é o momento em que elas se assumem. Entenda o fenômeno dos coming-out no YouTube, saindo do armário
coming out

Se tentássemos resumir a vida da maioria das pessoas LGBT em um filme, com certeza um dos pontos de maior conflito em toda a narrativa seria o momento em que elas se assumem. Não importa qual orientação sexual ou identidade de gênero, desde que ela não corresponda ao que é tido como “normal”, o momento em que decidimos abrir essa parte de nós para o mundo pode ser aterrorizante.

Justamente por ser considerado como um ponto de virada na vida de muitos, episódios como esse têm um potencial narrativo absurdo. Não à toa, uma pesquisa feita pelo YouTube em 2018 apontou que os “coming-out videos” (vídeos que mostram pessoas “saindo do armário”) têm três vezes mais engajamento comparado aos demais conteúdos do canal.

Qual é o propósito de assumir-se em um vídeo?

Os criadores de conteúdo precisam estabelecer uma conexão cada vez mais íntima com seu público para mantê-los engajados. Afinal, é a mesma lógica de uma amizade: quanto mais você compartilha os acontecimentos da sua vida com seus amigos, mais assuntos vocês têm para conversar.

Para além do engajamento, compartilhar momentos tão íntimos e muitas vezes tão delicados tem um poder verdadeiramente transformador. Pense em um adolescente homossexual que vive em uma cidade no interior do Brasil, por exemplo. As referências que ele tem de pessoas com os mesmos dilemas que ele enfrenta são poucas, quando não inexistentes. Muitas vezes ele sequer conhece alguém que se declare homossexual.

Austin e Aaron Rhodes

Saber que existem pessoas que vivenciam questões parecidas com as nossas é fundamental para entendermos que não estamos sozinhos no mundo. Por isso, conteúdos que mostram como foi o processo de entendimento da sexualidade de um criador, por exemplo, acabam empoderando e fazendo com que sua audiência reflita sobre seus próprios dilemas.

Os coming-out videos também são uma excelente ferramenta para educar o público de um canal. Eles podem encorajar e mostrar quais são as melhores formas de sair do armário para quem deseja se assumir, mas também apresentar o tema para uma parcela da audiência que nunca teve contato com o assunto.

Por que este conteúdo engaja tanto?

Em um artigo publicado em outubro de 2019, o YouTube afirmou que existem mais de 2,3 milhões de vídeos com conteúdo LGBT+ publicados na plataforma. Desses, mais de 30 mil tem como tema o ato de “sair do armário”.

Mas o dado mais incrível vem agora: até ano passado, esses conteúdos somavam mais de 700 milhões de visualizações! E os números não mentem: se este tipo de conteúdo atrai tanta audiência, com certeza seu tema tem um poder considerável para chamar a atenção das pessoas.

Inclusive, apesar disso tudo ter começado a pipocar lá nos Estados Unidos, esses vídeos logo se tornaram um fenômeno global. Dados do YouTube também mostram que, em 2018, seis dos dez maiores mercados que mais consumiam este tipo de conteúdo eram países que não falavam inglês, como Argentina, Coreia do Sul e Itália.

A viralização dos coming-out videos pode ser explicada por vários fatores, mas dois deles talvez sejam os principais. No livro Contágio: Por que as Coisas Pegam, do especialista em marketing viral Jonah Berger, entre as características decisivas para a disseminação de um conteúdo estão sua capacidade de criar gatilhos e despertar emoções.

Elle Mills

Vídeos em que os criadores de conteúdo saem do armário nos remetem às nossas próprias experiências pessoais. Nos fazem reviver toda a angústia, tensão e alívio consequentes desse acontecimento. Eles também despertam emoções muito intensas tanto nas pessoas que já passaram por essa situação quanto nas que ainda enfrentarão isso.

E diria mais: até as pessoas que não são LGBTs, mas que se conectam de alguma forma com esse turbilhão de sentimentos, acabam sendo impactadas por esse tipo de conteúdo e, consequentemente, engajando com o material.

A evolução dos coming-out videos

Os primeiros registros de pessoas saindo do armário no YouTube são de 2006, apenas um ano depois do lançamento da plataforma. E de lá para cá, muita coisa mudou.

Dados fornecidos pelo YouTube ao HuffPost em 2017 mostram um crescimento surpreendente de vídeos com este tipo de conteúdo desde 2006.

numbers coming out

Se nos primeiros anos muitas pessoas “desconhecidas” estavam usando a plataforma para sair do armário, em 2013 o público voltou os olhos para os anúncios públicos do cantor Troye Sivan e do atleta Tom Daley. Ambos saíram do armário nos seus canais pessoais do YouTube.

 

Muitos criadores alcançaram recordes de visualizações com esse tipo de conteúdo. Os gêmeos Austin e Aaron Rhodes comoveram o mundo quando ambos se assumiram ao mesmo tempo para seu pai em uma ligação telefônica. Algum tempo depois, a youtuber canadense Elle Mills inovou. Ela fez um vlog que acompanhou o processo de assumir sua bissexualidade para seus amigos e família, com direito à dinâmicas e revelações super inusitadas.

Em 2019, Eugene Lee, integrante do grupo The Try Guys, decidiu sair do armário com o lançamento de um sensível e super produzido videoclipe musical. Este ano, uma das mais famosas vloggers de beleza do mundo se assumiu transgênero em seu canal no YouTube. O coming-out video da NikkieTutorials conta com mais de 35 milhões de visualizações.

Exemplos nacionais também não faltam. Os vídeos dos youtubers Jean Luca e Luba conversando com suas mães sobre suas orientações sexuais ultrapassaram facilmente a marca das milhões de visualizações da mesma forma que os conteúdos da gringa.

Saindo do armário

Isso só mostra que, independente do local ou de quem é sua audiência, o poder narrativo e de engajamento que os coming-out videos têm é um ponto fora da curva. As pessoas se interessam por histórias cheias de conflito e tensão, além de torcer para um desfecho positivo para que possam se sentir aliviadas junto com os protagonistas.

E se tem algum episódio comum à vida das pessoas LGBTs que carrega todos esses sentimentos ao mesmo tempo, com certeza é o momento em que elas afirmam sua identidade e se colocam no mundo como verdadeiramente são.

 

matheus FaistingMatheus Faisting

Roteirista na Dia Estúdio, é jornalista de formação e produtor audiovisual com histórico de projetos focados na comunidade LGBT+. Com passagens por TV e empresas de marketing, entende a comunicação como uma poderosa ferramenta de transformação social. Do mainstream ao alternativo, é um apreciador de narrativas que engajam e, de preferência, com um bom plot twist.